JOÃO DO BAIRRO, O DEPUTADO E A MODERNIZAÇÃO

O lei­tor desse texto cer­ta­mente já ouviu a pala­vra moder­ni­zação ser pro­nun­ciada em diver­sas oca­siões, como no dis­curso do polí­tico, em sala de aula, em con­ver­sas roti­nei­ras, em notí­cias de jor­nais, na inter­net e outros meios. Uma sim­ples busca dessa pala­vra no site Goo­gle em julho de 2013, por exem­plo, me per­mi­tiu encon­trar mais de seis mil­hões de resul­ta­dos.  É pro­vá­vel que nos pró­xi­mos meses esse número venha ser maior. Isso sig­ni­fica que o termo moder­ni­zação é bas­tante difun­dido nos meios de infor­mações. Mas tam­bém é indis­cu­tí­vel que ele habita o ima­gi­ná­rio das pes­soas e é uti­li­zado para expli­car quase tudo.

Den­tre as várias oca­siões e meios por onde já vi e ouvi o termo, um fato me cha­mou a ate­nção. João do Bai­rro, um repre­sen­tante de asso­ciação de bai­rro da peri­fe­ria da cidade de Apa­re­cida de Goiâ­nia, estado de Goiás-Brasil, em evento onde estava pre­sente um depu­tado fede­ral e can­di­dato a reeleição, apon­tava a falta de infra­es­tru­tura em algu­mas par­tes de sua cidade. Den­tre os pro­ble­mas men­cio­na­dos, res­sal­tou a ausên­cia de esgoto, ruas não pavi­men­ta­das, cri­mi­na­li­dade alta, falta de emprego, pou­cas esco­las, ser­viços de saúde pre­cá­rios etc. O depu­tado pediu a pala­vra e, com um dis­curso breve, res­pon­deu que era pre­ciso “tirar aque­las pes­soas do arcaico e levar os ser­viços para aquele povo”. Res­sal­tou por duas vezes que a moder­ni­zação não havia che­gado ao refe­rido bai­rro e por isso a popu­lação estava no terreno da pobreza. Moder­ni­zar, segundo o depu­tado, sig­ni­fi­cava levar alguns ser­viços para aquela popu­lação pobre, carente e que, por não ter embar­cado no trem da moder­ni­dade, ficou per­dida e desolada na estação do atraso.

 

A MODERNIZAÇÃO NÃO HAVIA CHEGADO AO REFERIDO BAIRRO E POR ISSO A POPULAÇÃO ESTAVA NO TERRENO DA POBREZA

 

Tanto esse diá­logo entre o João do Bai­rro e o legis­la­dor assim como a mas­si­fi­cação do termo moder­ni­zação em todos os meios de infor­mações sus­cita uma dis­cus­são que envolve três pro­ble­mas prin­ci­pais. O pri­meiro é a natu­ra­li­zação do termo moder­ni­zação no ima­gi­ná­rio social. Como con­se­quên­cia, esta pala­vra é bana­li­zada e, de tanto men­cio­nada e ima­gi­nada (sobre­tudo no senso comum), parece per­der sua real força de iden­ti­fi­cação com o fenô­meno a que se refere. Essa dis­se­mi­nação de sen­ti­dos carac­te­riza a polis­se­mia do termo, que diz res­peito à diver­si­fi­cação e variação de seu significado.

O segundo pro­blema é a dua­li­dade pre­sente no dis­curso do depu­tado e bas­tante comum nos meios de infor­mações. Não é difí­cil, aliás, encon­trar essa dua­li­dade nas inter­pre­tações cien­tí­fi­cas. Mas o que seria essa dua­li­dade? Para res­pon­der essa ques­tão não pre­ci­sa­mos ir longe. Basta obser­var­mos o dis­curso do depu­tado e per­ce­ber que ele coloca a moder­ni­zação como fenô­meno sepa­rado e oposto do que ele chama de “arcaico e atra­sado”. De um lado está a moder­ni­zação e de outro o atra­sado. A pri­meira é posta como bené­fica e “sal­va­dora”; o segundo é tido como ruim e con­de­ná­vel.  Semel­hante a isso, pode­mos lem­brar aque­las inter­pre­tações sobre centro-periferia, antigo-novo, bem-mal etc, apre­sen­ta­dos como se fos­sem sepa­ra­dos. No caso do dis­curso do depu­tado, a moder­ni­zação é posta como a única alter­na­tiva para se desen­vol­ver – e caso não se queira per­ma­ne­cer no atraso, é pre­ciso modernizar.

 

Apa­re­cida de Goiâ­nia vista do Morro da Serrinha (21–10-2013)

O ter­ceiro pro­blema, que pode­mos deno­mi­nar de auto­ri­ta­rismo da moder­ni­zação, deco­rre dos dois pri­mei­ros. A moder­ni­zação é natu­ra­li­zada e os dua­lis­mos são difun­di­dos para pro­vo­car uma divi­são no modo de enten­der o mundo, mas tam­bém em função de inter­es­ses que defen­dem um deter­mi­nado caminho (a exem­plo da moder­ni­zação) como única saída do atraso. De maneira análoga pode­mos ima­gi­nar um líder reli­gioso ao con­ven­cer um fiel de que exis­tem ape­nas duas alter­na­ti­vas para sua vida: o bem ou o mal – o céu ou o inferno. Com esse racio­cí­nio cer­ta­mente o líder reli­gioso tende a alca­nçar seu obje­tivo com faci­li­dade. O depu­tado tam­bém está con­ven­cido (e quer con­ven­cer a todos) de que a moder­ni­zação é a única alter­na­tiva para aquele que não queira se “quei­mar” nas “cha­mas” do atraso. A vida, neste caso, é redu­zida a dois camin­hos, carac­te­ri­zando o auto­ri­ta­rismo daque­les que con­tro­lam a moder­ni­zação e que tam­bém difun­dem seus sentidos.

 

AO CONTRÁRIO DO QUE DISSE DEPUTADO, A MODERNIZAÇÃO EXISTE TAMBÉM NA PERIFERIA

 

A dis­per­são da pobreza e os con­tras­tes visí­veis nas pai­sa­gens das cida­des não repre­sen­tam o reverso de um pro­cesso eco­nô­mico ou o atraso de paí­ses como o Bra­sil, mas o tipo de moder­ni­zação que nele foi repro­du­zida. Isto é, ao con­trá­rio do que afir­mou o depu­tado, a moder­ni­zação existe tam­bém na peri­fe­ria. E se ela está em todos os luga­res, o João do Bai­rro, ao levan­tar os pro­ble­mas de sua cidade, estava nos mos­trando um pro­blema que deco­rre do modo como a moder­ni­zação foi repro­du­zida naquele lugar, e não a ausên­cia dela. Ter a moder­ni­zação como única forma de desen­vol­vi­mento, por­tanto, é cair em uma pro­funda cilada.

 

 

Mais infor­mações em:

CASTILHO, D. Os sen­ti­dos da moder­ni­zação. Bole­tim Goiano de Geo­gra­fia. Goiâ­nia: UFG, jul./dez. de 2010, v. 30, n. 2, p. 125–140. <http://www.revistas.ufg.br/index.php/bgg/article/view/13802>

 

Denis Cas­tilho é pro­fes­sor do curso de Geo­gra­fia da Uni­ver­si­dade Fede­ral de Goiás, Brasil.